Vicente de Paulo, São
Pensamentos Espíritas que Correm o Mundo
Em nosso último número referimos alguns pensamentos que se encontram aqui e ali, na imprensa, e que o Espiritismo pode reivindicar como partes integrantes da doutrina. Continuaremos a referir, de vez em quando, os que vierem ao nosso conhecimento. Estas citações têm o seu lado útil e instrutivo, pois provam a vulgarização das idéias espíritas.

Na revista hebdomadária do Siècle de 2 de dezembro, o Sr. E. Texier, dando conta de uma nova obra do Sr. P.-J. Stahl, intitulada Bonnes fortunes parisiennes, assim se exprime:

“O que distingue essas Boas sortes parisienses é a delicadeza de toque na pintura do sentimento, é o bom perfume do livro, que se respira como uma brisa. Raramente tinham tratado este assunto tão vasto, tão explorado, tão rebatido e sempre novo – o amor – com verdadeira ciência, sentida observação, mais tato e
leveza de mão. Disseram que, numa existência anterior, Balzac deveria ter sido mulher; poder-se-ia dizer também que Stahl tinha sido uma jovem. Todos os pequenos segredos do coração que se abre ao contato do primeiro arroubo, ele os capta e os fixa até em seus mais finos matizes. Ele fez melhor do que estudar as suas heroínas; dirse-ia que sentiu todas as suas impressões, todas as suas vibrações, todos esses lindos choques – alegria ou dor – que se sucedem na alma feminina e a enchem aos primeiros botões da floração de abril.”

Não é a primeira vez que a idéia das existências anteriores é expressa fora do Espiritismo. O autor do artigo outrora não poupava sarcasmos à nova crença, a propósito dos irmãos Davenport, em quem, como a maioria de seus confrades em
jornalismo, julgou, e talvez ainda julgue encarnada a doutrina. Escrevendo estas linhas, certamente não suspeitava que formulava um de seus mais importantes princípios. Que o tenha feito seriamente ou não, pouco importa! A coisa não prova menos que os próprios incrédulos encontram na pluralidade das existências, ainda que só admitida a título de hipótese, a explicação das aptidões inatas da existência atual. Este pensamento, lançado a milhões de leitores pelo vento da publicidade, se populariza, se infiltra nas crenças; habitua-se a ele; cada um aí procura a razão de ser de uma imensidade de coisas incompreendidas, de suas próprias tendências: aqui gracejando, ali seriamente; a mãe cujo filho é um tanto precoce sorri de bom grado à idéia de que ele possa ter sido um homem de gênio. Em nosso século racionalista, a gente quer dar conta de tudo; repugna ao maior número ver nas boas e más qualidades trazidas ao nascer, um jogo do acaso ou um capricho da divindade;a pluralidade das existências resolve a questão mostrando que as existências se encadeiam e se completam umas pelas outras. De dedução em dedução chega-se a encontrar, neste princípio fecundo, a chave de todos os mistérios, de todas as aparentes anomalias da vida moral e material, das desigualdades sociais, dos bens e dos males daqui de baixo; enfim o homem sabe de onde vem, para onde vai, por que está na Terra, por que é feliz ou desgraçado e o que deve fazer para assegurar a sua felicidade futura.

Se se acha racional admitir que já vivemos na Terra, não o é menos que possamos aqui reviver ainda. Como é evidente que não é o corpo que revive, só pode ser a alma; esta conservou, pois, a sua individualidade; não se confundiu no todo universal; para conservar suas aptidões, é preciso que tenha ficado ela mesma. O único princípio da pluralidade das existências é, como se vê, a negação do materialismo e do panteísmo.

Para que a alma possa realizar uma série de existências sucessivas no mesmo meio, é preciso que não se perca nas profundezas do infinito; deve permanecer na esfera de atividade terrestre. Eis, pois, o mundo espiritual que nos rodeia, em meio do qual vivemos, no qual se derrama a Humanidade corporal, como ele mesmo se derrama nesta. Ora, chamai estas almas de Espíritos e eis-nos em pleno Espiritismo.

Se Balzac pôde ter sido mulher e Stahl uma jovem,então as mulheres podem encarnar-se como homens e, por conseguinte, os homens podem encarnar-se como mulheres. Não há, pois, entre os dois sexos senão uma diferença material, acidental e temporária, uma diferença de vestimenta carnal; mas quanto à natureza essencial do ser, ela é a mesma. Ora, da igualdade de natureza e de origem, a lógica conclui pela igualdade dos direitos sociais. Vê-se a que conseqüências conduz o só princípio da pluralidade das existências. Provavelmente o Sr. Texier não acreditava ter dito tanta coisa nas poucas linhas que citamos.

Mas, talvez digam, o Espiritismo admite a presença das almas em meio a nós e suas relações com os vivos; eis onde está o absurdo. Sobre este ponto escutemos o Sr. abade V..., novo cura de São Vicente de Paulo. No discurso que ele pronunciou domingo, 25 de novembro último, por sua investidura, fazendo o elogio do patrono da paróquia, disse: “O Espírito São Vicente de Paulo está aqui, eu o afirmo, meus irmãos; sim, ele está em meio a nós;paira sobre esta assembléia; ele nos vê e nos ouve; sinto-o perto de mim, a inspirar-me.” Que mais teria dito um espírita? Se o Espírito São Vicente de Paulo está na assembléia, por quem é atraído, senão pelo pensamento simpático dos assistentes? É o que diz o Espiritismo. Se aí está, outros Espíritos igualmente aí podem encontrar-se. Eis o mundo espiritual que nos cerca. Se o sr. abade sofre sua influência, pode sofrer a de outros Espíritos, assim como outras pessoas. Há, pois, relações entre o mundo espiritual e o mundo corporal. Se fala pela inspiração desse Espírito, então é médium falante; mas se fala, também pode escrever sob essa mesma inspiração o que, sem dúvida, terá feito mais de uma vez sem o suspeitar; ei-lo, então, médium escrevente inspirado,intuitivo. Entretanto, se lhe dissessem que havia pregado o Espiritismo, provavelmente se defenderia com todas as suas forças.

Mas sob que aparência o Espírito São Vicente de Paulo poderia estar nessa assembléia? Se o sr. cura não diz, São Paulo o diz: é com o corpo espiritual ou fluídico, o corpo incorruptível, que reveste a alma depois da morte, e ao qual o Espiritismo dá o nome de perispírito.

O perispírito, um dos elementos constitutivos do organismo humano, constatado pelo Espiritismo, tinha sido suspeitado há muito tempo. É impossível ser mais explícito a este respeito que o Sr. Charpignon, em sua obra sobre o magnetismo, publicada em 1842.1 Com efeito, lê-se no capítulo II, página 355:

“As considerações psicológicas a que acabamos de nos entregar tiveram como resultado fixar-nos na necessidade de admitir, na composição da individualidade humana, uma verdadeira trindade, e achar neste composto trinário um elemento de natureza essencialmente diferente das duas outras partes, elemento perceptível, mais por suas  faculdades fenomenais que por suas propriedades constitutivas, porque a natureza de um ser espiritual escapa aos nossos meios de investigação. O homem é, pois, um ser misto, um organismo de composição dupla, a saber: combinação de átomos formando os órgãos, e um elemento de natureza material, mas indecomponível, dinâmico por essência, numa palavra, um fluido imponderável. Isto quanto à parte material. Agora, como elemento característico da espécie hominal: este ser simples, inteligente, livre e voluntário, que os psicólogos chamam alma...”

Estas citações e as reflexões que as acompanham têm por fim mostrar que a opinião está menos afastada das idéias espíritas do que se poderia crer, e que a força das coisas e a 1 Fisiologia, Medicina e Metapsíquica do Magnetismo, por Charpignon, 1 vol. In-8. Paris, Baillière, 17, Rue de l’École-de-Médecine. Preço: 6 fr. irresistível lógica dos fatos a isto conduzem por um pendor bem natural. Não é, pois, uma vã presunção dizer que o futuro é nosso.
R.E. , janeiro de 1867, p. 28